domingo, 26 de fevereiro de 2012

PEQUENOS TEXTOS

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA
Caríssimos paroquianos, meus irmãos em Cristo:
Hoje, neste penúltimo domingo antes da quaresma, sinto uma grande mágoa ao dirigir-me a vós.
É a primeira vez que experimento este sentir.
Até hoje, e desde aquele dia em que desembarcámos e nos estabelecemos nesta terra, as minhas homilias dominicais foram sempre uma serena fonte de prazer e de alegria — foram-no para mim, digo eu; com humildade e sentido das realidades, deverei pensar que talvez não partilhásseis estes sentimentos. E sendo este o caso, por certo a culpa há-de ser minha e não vossa, que somente haveis errado ao escolher-me como vosso director espiritual neste voluntário exílio que temos de considerar dourado e por ele louvar a Deus e dar-Lhe graças.
Porém, ainda que erradamente, haveis-me escolhido. Sou vosso pároco, vosso director espiritual — e, podeis ter a maior e mais férrea certeza, vosso amigo sincero e dedicado. Não só vosso, mas também daqueles que connosco vieram e não frequentam esta igreja, e ainda, sem qualquer discriminação na amizade, daqueles que não frequentam igreja alguma.
Pois bem. Neste domingo da sexagésima, é na tripla qualidade de pároco, director espiritual e amigo, que tenho de vos falar sobre rumores que se avolumam, acerca do joio que terá entrado na nossa seara, transportado em semente não sei por que vento maléfico.
Sabeis do que falo, caríssimos irmãos. Não preciso de explicar melhor esta alusão.
Perdoai-me se abuso da vossa paciência; vou contar-vos uma pequena história, recordá-la, quiçá, a uns e revelá-la certamente a outros. É a história daquele sacerdote que, há muitos, muitos anos, se encontrava à frente de uma paróquia da longínqua Lisboa e que era conhecido pela linguagem firme e chã que usava nas homilias. Tinha ele ouvido falar com insistência das faltas sérias, das faltas graves cometidas por algumas senhoras da sua paróquia e decidiu dirigir-lhes uma reprimenda. Só o podia fazer durante a homilia dominical, pois essa era a única altura em que as via. Escolheu, portanto, a missa mais concorrida e nela fez, com todo o vigor, as suas admoestações pastorais. E terminou assim: «A essas irmãs que assim tão erradamente procedem, dirijo a minha súplica. Já estou velho, não tardará que Nosso Senhor me chame, e quando isso acontecer Ele vai, certamente, perguntar-me por vós, pelas minhas ovelhas. E eu, irmãs, eu não quero ter de dizer-Lhe: ovelhas, meu Deus? Dizei antes, cabras!»
Ora bem: é certo que nada de semelhante se passa entre nós, tanto quanto sei. Na realidade, devo até admitir que, em rigor, o mal insidioso que parece estar em vias de atacar-nos não se concretiza, directamente (sublinho o «directamente»), em pecado, tal como este é definido pela Santa Madre Igreja.
No entanto, importa não nos iludirmos: continua a ser um mal, porquanto aflige, ou afligirá, a concretizar-se, a grande maioria dos nossos irmãos, a grande maioria de todos os que vivem nesta ilha, até agora abençoada pelo Senhor.
Ele trará consigo a peste, a fome e a guerra, disso podeis estar seguros. Esta afirmação pode parecer-vos excessiva, mas atentai em que há várias formas e vários níveis de peste, de fome e de guerra.
Mas o mais monstruoso, meus irmãos, o mais vil, o mais inacreditável é que foi deste mesmo mal que vós haveis fugido!
Foi ele que tornou a vossa existência terrena em inferno de cólera mal contida (e a cólera, a ira, essa sim, é um pecado capital), foi ele que vos perseguiu, dentro e fora do lar, até mesmo no mais sagrado dos retiros. Foi ele que vos submergiu num oceano de frustrações, de maus sentimentos, de grosseira ignorância.
Foi ele, enfim, que vos fez abandonar a vossa vida confortável, parentes e amigos, e escolher uma ilha, esta ilha, para facilitar a vossa defesa.
Lembrai-vos desse tempo, eis o que vos peço.
Eu próprio o recordo, muito vividamente, e por mais que um motivo. Com efeito, ouvi, nessa época, alguns irmãos nossos dizerem com expressões de grande felicidade: «Tudo vai correr bem, pois vamos para uma ilha deserta!».
Devia tê-los desenganado, mas não o fiz, pois via-os felizes dizendo isto e julguei que esse engano não tinha importância. Vejo agora que errei e portanto declaro-vos:
Ninguém, nenhum homem consegue refugiar-se numa ilha deserta.
É uma impossibilidade física, é uma lei da lógica e da natureza. Porque, evidentemente, basta que um homem desembarque numa ilha deserta para que ela deixe de o ser. Por maioria de razão assim é neste caso, pois vós viestes com pais, ou com filhos, ou irmãos, ou... enfim, poucos foram os que vieram sozinhos.
Temos, pois, que nesta ilha há uma comunidade. E uma comunidade tem regras e entre essas regras são essenciais aquelas que garantem a sua própria conservação, a sua própria existência, nas condições e com as qualidades que fazem dela o que é, ou o que pretende ser.
Dizem os rumores insistentes a que já aludi que alguns de vós querem alterar tais condições e tais qualidades.
Isto, meus irmãos, não pode ser. Que esses embarquem e regressem para de onde vieram, pois que pertencem a esse mundo terrível, esse mudo cego e mau, envenenado pela estupidez, pelos apetites grosseiros e pelos conflitos, esse mundo de onde em boa hora fugimos.
E permiti que vo-lo diga, com a franqueza que vos devo: se quiserem embarcar, saberemos que não são afinal, e nunca foram, membros da nossa família. Mas se quiserem ficar, persistindo nos seus negros desígnios, então terei de os classificar como verdadeiros criminosos.
Quero crer, e espero em Deus ter razão na minha crença, que tudo não passa de uma breve crise, que não estamos em verdadeiro perigo, que se trata simplesmente de uma fraqueza passageira dos sentidos e que esses que sentem a tentação — e não lhes devemos querer mal, por isso, pois somos todos imperfeitos — não lhe vão ceder.
É escorado nessa fé, alimentado por essa esperança, que lhes peço, muito simplesmente, um pouco de inteligência e um pouco de amor ao próximo. A vós todos, meus irmãos, suplico: transmiti este apelo pungente... digo bem: pungente; transmiti-o a todos aqueles que na nossa ilha seguem outra religião ou não têm nenhuma.
Vedes, pois, que já não falo somente como pároco. Vou mais longe: se algum de vós me disser que este não é um assunto pertinente, no âmbito do meu ministério espiritual, responderei dando-lhe razão — num sentido restrito. Porém um sacerdote é também um cidadão, e com responsabilidades morais acrescidas, às quais não pode fugir.
E para vós, aqui presentes, vai um outro apelo, aos vossos corações: lutai, meus irmãos, para fechar as nossas portas e o nosso porto à pestilência infecciosa.
Meus irmãos, terminei a homilia. Mas não o meu discurso: esse vou encerrá-lo agora, falando, não já como vosso pároco e sim como um simples homem, um cidadão, como vós.
Eis o que tenho a dizer-vos, e nisto usarei da mesma frontalidade e crueza de que deu provas aquele outro pároco de que falei há pouco:
Se alguém, seja quem for, se atrever a trazer para cá um só aparelho receptor de televisão, racho-lhe os cornos.
João Aguiar

O rosto mais cândido do Oriente - Minha cicerone na casa Museu, em Macau, de Sun Yat-Sen. fundador da República da China

Sem comentários:

Enviar um comentário