segunda-feira, 18 de julho de 2011

REVIVER


A VISÃO PORTUGUESA DE VIRIATO 
A visão portuguesa de Viriato é o tema que deverei desenvolver, ainda que brevemente. Julgo que essa visão estará, essencialmente, contida nas diversas intervenções dos participantes vindos do meu país. Elas contemplam, em primeiro lugar, o domínio da História e da Arqueologia, em que até as especulações partem de factos comprovados ou prováveis; são as contribuições do Prof. Dr. Armando Coelho da Silva e do Dr. Augusto Ferreira do Amaral. O primeiro é, entre outras coisas, uma das maiores autoridades em Portugal sobre a cultura castreja e a romanização do Noroeste Peninsular; o tema que proporá para debate será o próprio nome de Viriato, que tem sido objecto de várias hipóteses explicativas. Quanto ao Dr. Ferreira do Amaral, que tem realizado investigações históricas do maior interesse e do maior rigor, falará sobre o nome de Astolpas, o sogro de Viriato, no âmbito de uma intervenção em que abordará a origem dos Lusitanos e dos povos mais antigos que viveram em Portugal.
Por outro lado, o papel de Viriato no universo dos mitos portugueses será abordado por António de Macedo, professor, realizador cinematográfico e escritor com uma vasta obra publicada. Quanto ao tratamento deste herói lusitano na literatura — e não apenas na literatura portuguesa — caberá ao prof. Dr. José Barbosa Machado, que, de resto, explorou já o tema na dissertação que apresentou para o seu mestrado em Educação.
A vertente dramática será a matéria do escritor e editor João Osório de Castro. E, finalmente, teremos aquilo a que chamarei a visão tradicional, quer nas suas ligações com várias localidades portuguesas, nomeadamente Cabanas de Viriato — questão que será explorada por Francisco António Pessoa, presidente da Assembleia Municipal de Carregal do Sal — quer num âmbito mais geral, o de um Viriato nascido na Serra da Estrela, pastor montanhês, símbolo da luta pela liberdade; dele nos falará o dr. Sérgio Franclim, professor de Língua Portuguesa e escritor.
Feita esta breve apresentação, penso que deverei limitar o meu contributo a dar-vos uma perspectiva global da ideia que, em Portugal, temos de Viriato, de modo a mostrar-vos, digamos, o pano de fundo que servirá de cenário à participação portuguesa neste curso.
Antes de mais, devo esclarecer que, hoje em dia, a figura de Viriato não se encontra em primeiro plano; é um herói, mas não é uma vedeta. Mesmo porque — está morto.
Contudo, na posição relativamente obscura que ocupa, Viriato conserva força e prestígio. Mais, até, do que eu julgava quando escrevi o meu primeiro romance, em que tentei narrar o que poderá (talvez) ter sido a sua vida e a sua acção como chefe militar e político. Sem cair na tentação da falsa modéstia, direi que a aceitação que esse livro obteve em Portugal se deveu mais ao tema do que ao seu eventual mérito literário. Foi o tema que motivou verdadeiramente as repetidas edições, uma adaptação para banda desenhada e uma adaptação teatral, além de ter inspirado um jovem músico português a compor a sua primeira sinfonia. Estou certo de que foi Viriato, e não eu, quem desencadeou todo esse processo criativo.
Isto poder-nos-ia levar a pensar que ele pertence a uma tradição com muito profundas raízes populares, comparável àquela outra que produziu numerosas lendas sobre mouras e mouros. Mas não me parece que seja esse o caso. A figura de Viriato entrou verdadeiramente no imaginário português por via erudita. As referências, não muito numerosas, que lhe são feitas na Idade Média encontram-se em crónicas e, que eu saiba, não há, nessa época, menção a tradições populares, a coisas que o povo diz. E quando, no século XVI, se estrutura verdadeiramente o mito de Viriato como guerreiro pré-português, é ainda por via erudita que esse mito se impõe. António de Macedo e José Barbosa Machado farão, julgo, referências mais pormenorizadas ao assunto, mas julgo poder dizer, para já, que a «visão portuguesa» de Viriato se deve essencialmente aos homens de cultura e, em grande medida, aos poetas.
O curioso é que essa visão permeou de tal modo as camadas populares que se tornou, também, sua pertença e ganhou uma vida própria e um dinamismo próprio, produzindo, então sim, as suas lendas, quase diria a sua gesta.
Assim, hoje, os estudiosos sabem que, em termos de rigor histórico, Viriato é uma figura nebulosa; que será, no mínimo, forçar a História fazer dele um antepassado directo dos Portugueses; que a própria identificação de Portugal com a antiga Lusitânia é historicamente muito aproximativa e pouco correcta; porém, o imaginário popular retém ainda os elementos que no passado lhe foram transmitidos por uma classe culta que fora encontrar nos autores greco-romanos os elementos necessários para construir aquilo que, na época, pareceria uma tese sólida, talvez mesmo irrefutável: a da ligação genealógica directa, a da continuidade entre a Lusitânia e Portugal.
Haveria muito a dizer sobre as motivações profundas dessa ideia, mas falta-nos o tempo. Retenha-se, apenas, que, nesta apropriação dos Lusitanos pelos Portugueses, Viriato devia, inevitavelmente, ocupar uma posição central.
Pois bem: mesmo quando uma tal ideia começou a ser contestada, ainda no século XIX, por historiadores como Alexandre Herculano, ela manteve-se, imperturbada, no imaginário português.
E que ideia, que visão é essa?
Julgo que o grande poeta Fernando Pessoa, já em pleno século XX, definiu, em esboço, o seu enquadramento num poema dedicado a Viriato, que faz parte do livro Mensagem:
«Teu ser é como aquela fria luz
Que precede a madrugada»
A madrugada, entenda-se, o nascimento de Portugal. De certo modo, temos nestes versos — e em todo o poema — delineada a teoria da Lusitânia precursora de Portugal e de Viriato como o herói precursor da criação portuguesa.
Mas Viriato é também o herói libertador, ou, pelo menos, o defensor da liberdade; e está, sem dúvida, ligado à ideia da identidade nacional portuguesa.
Esta é, por assim dizer, a noção generalizada. E, embora eu a tenha classificado de «popular», convirá ter presente que, nas suas linhas gerais, ela foi adoptada como dado adquirido, mesmo ao longo do século XX, por diversos autores, alguns dos quais são nomes importantes das letras portuguesas. Ela não se confinou, portanto, às tradições locais nem ao folclore português — e uso aqui o termo «folclore» no seu sentido exacto, de «conhecimento do povo».
Julgo dever agora, nesta última parte da minha intervenção, reflectir, ainda que brevemente, sobre a visão portuguesa que acabo de expor. Esta visão, a que são hoje alheios os investigadores especializados, contém um aspecto muito curioso: ela como que executa um salto por cima da lógica e da História.
De facto, e como já referi, tal visão liga-nos, pelas nossas origens, aos antigos Lusitanos. Não vou enredar-me em argumentos genéticos ou etnológicos, matérias a que sou estranho; mas direi que, em termos de língua, cultura e civilização, a matéria-prima a partir da qual se formou o povo português foi, afinal, o legado de Roma, acrescido de elementos germânicos, árabes e berberes. Sem dúvida, estão presentes elementos anteriores, ainda visíveis ou discerníveis; sem dúvida, esses elementos fazem parte do nosso legado. Mas a sua importância parece-me secundária ao lado dos contributos que referi em primeiro lugar.
A verdade é que Portugal não nasceu da luta dos Lusitanos contra Roma. Portugal nasceu das Cruzadas do Ocidente, da chamada Reconquista Cristã; e a exploração das origens desse fenómeno leva-nos de regresso ao Império Romano cristianizado, aos reinos suevo e visigodo, à conquista islâmica. Mais uma vez, parece-me que é um acto de acrobacia tomar a figura de Viriato, um homem do século II a. C., como pertencendo à corrente de afirmação nacional portuguesa.
Há, pois, uma estranha acrobacia. No século XI, mais precisamente em 1071, o conde portucalense Nuno Mendes reuniu à sua volta quase todos os barões de Entre-Douro-e-Minho, revoltou-se contra Garcia, rei da Galiza, e foi derrotado e morto. Como se sabe, só no século seguinte Portugal se tornaria independente, mas alguns historiadores — contestados, embora, por outros — consideram este episódio como um primeiro sinal da nacionalidade nascente. Seria natural, em todo o caso, que os Portugueses vissem no conde Nuno Mendes um primeiro herói libertador; no entanto, é-lhes, praticamente, desconhecido.
Em contrapartida, colocam Viriato ao lado dos nossos primeiros reis, de D. Afonso Henriques a D. Dinis; em posição superior, certamente, a D. Afonso II, do qual ninguém fala e cuja acção política foi determinante. Vejo aqui, pois, uma quebra de lógica, sobretudo se tivermos em conta as transformações, os realinhamentos e as fusões culturais e étnicas que ocorreram entre os séculos II antes de Cristo e XII depois de Cristo, altura em que o povo português se constituiu em reino independente.
Mas...
Mas se os mitos, na sua forma mais válida e pura, tendem a ser coerentes, embora não coincidentes, com a História, nem sempre as tradições se conformam com ela. Viriato representa, assim, uma tradição inconformista. Ele e a sua época estão firmemente implantados no nosso imaginário; ele é, para os Portugueses, o guerreiro ancestral e a sua época o tempo mítico dos antepassados longínquos. Tenho de confessar-vos: eu próprio, quando visito, em Portugal, as ruínas de um castro ou de uma citânia, sinto uma emoção que pouco ou nada tem de racional, mas que é forte e profunda.
E a vida, felizmente, não é só feita de razão. 
João Aguiar


Na foto: Chefe do Governo da Extremadura,
Presidente da República Jorge Sampaio e ELE